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Dependência química em anestesiologistas

Institucional

10/12/2020

A dependência química é uma doença que acompanha a Anestesiologia desde seus primórdios. Muitos dos pioneiros da especialidade experimentaram anestésicos em si próprios, e alguns sofreram terríveis consequências e até desfechos trágicos. A maioria dos fármacos que surgem e juntam-se ao arsenal da especialidade tem potencial risco de abuso por parte dos médicos. E, em especial, são os anestesiologistas, que tem maior acesso a essas drogas.

Diferente dos outros médicos que não administram diretamente as medicações que prescrevem, o anestesiologista tem acesso, manipula e administra diariamente drogas muito potentes e dependógenas. Além disso, o abuso de substâncias está associado a diversos fatores predisponentes cotidianamente presentes na vida do especialista: alta carga de trabalho, pressão por desempenho, estresse, esgotamento psicológico (Síndrome de Burnout), transtornos psiquiátricos prévios, enfim, a dependência química em anestesiologistas é uma doença de etiologia multifatorial (tabela 1) e de difícil manejo.

O abuso de substâncias é definido como o uso repetido, excessivo    ou impróprio de uma substância psicoativa com consequências negativas em uma ou mais áreas da vida que, por sua vez, pode evoluir para dependência química que é uma doença crônica que envolve circuitos cerebrais de recompensa, motivação e memória. A disfunção desses circuitos está relacionada a manifestações psicológicas, biológicas e sociais.

Essas alterações podem ser observadas num indivíduo procurando e usando substâncias patologicamente. A dependência química é caracterizada pela inabilidade em manter abstinência consistente, com comprometimento do comportamento de controle, compulsão (craving), diminuição do reconhecimento dos problemas relacionados ao uso, isolamento social, tolerância, síndrome de abstinência e resposta emocional disfuncional.

Diferente de outras drogas como o Álcool cuja dependência química geralmente ocorre após anos de abuso, a dependência química de opióides venosos como o Fentanil e Sufentanil ocorre rapidamente, por isso é muito comum que os dois termos sejam utilizados com o mesmo sentido. Tanto o abuso quanto a dependência química são tipos de ‘Transtornos relacionados a substâncias’ (DSM-51) ou, em inglês, Substance Use Disorder (SUD).

É particularmente preocupante o abuso de opióides em anestesiologistas, especialmente o Fentanil, que vem sendo descrito há décadas no mundo todo. No entanto, diversos estudos têm relatado um recente e alarmante aumento na incidência de abuso de outros anestésicos como: Propofol, Cetamina e os Inalatórios, que estão associados a altas taxas de mortalidade.

O Fentanil (e seus derivados) é responsável por uma parcela significativa das admissões em programas de tratamento nos Estados Unidos para médicos anestesiologistas, e é mais observado  em residentes e anestesiologistas recém formados, embora possa ocorrer em qualquer faixa etária. O abuso de opióides por via venosa geralmente leva à dependência química rapidamente, com perda completa do controle sobre o consumo,  sendo comum  a alta tolerância que leva o médico a injetar doses cada vez maiores  e o desenvolvimento de Síndrome de Abstinência bastante desconfortável, que muitas vezes, leva a uma nova aplicação para aliviar os sintomas.

A Síndrome de Abstinência de opióides geralmente começa entre  6 a 12 horas após o último uso e o pico se dá entre 24 a 72 horas, durando cerca de uma semana. Os primeiros sintomas são inquietude, irritabilidade e fissura (craving). Após 12 horas são comuns bocejos, lacrimejamento e sudorese. No pico há intensificação desses sintomas, somados à piloeração, tremores, ondas de calor, frio e dores musculares.

Depois de 24 a 36 horas, comumente observa-se insônia, náuseas e vômitos, hipertensão arterial, taquicardia, perda de peso, entre outros. Esses sintomas vão diminuindo de intensidade até cessarem. É importante ressaltar que a “fissura” (craving), compulsão forte por usar, geralmente ocorre durante todo o período, sendo que o consumo geralmente alivia os sintomas, o que impede que a abstinência seja sustentada na maioria dos casos.

1 – DSM-5 – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5a edição (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders)

Tabela 1 – Fatores de risco relacionados à Dependencia Química

Apesar de mudanças comportamentais serem os indicadores mais comuns, alterações evidentes geralmente se apresentam quando a doença está em estágio avançado. Para evitar consequencias trágicas é importante que todos os anestesiologistas estejam atentos a sinais que podem ser indícios do abuso como labilidade emocional, aumento excessivo da carga de trabalho, preferência em trabalhar sozinho e fora do Centro Cirúrgico, idas frequentes ao banheiro, uso de mangas compridas, entre outros (tabela 2).

Reconhecer esses e outros sinais, ou índícios, pode fazer a diferença antes que seja tarde. Assim como intervir o mais rápido possível, mas de forma acolhedora e não julgadora. Não é fácil abordar o colega, mas é preciso ter em mente, que isso pode prevenir desfechos trágicos. É comum que ele negue o uso, o que faz parte da doença. Provavelmente o colega está amedrontado, com a vida pessoal e social comprometida e a profissão pode ser a última coisa que mantém o significado de sua vida.

Essa atitude de negação pode dificultar contato empático, mas manter atitude não confrontativa resulta em intervenções mais eficazes. Aliás, devem ser feitas com cuidado, e não por “conversas de corredor”. Deve-se mostrar as evidências do ato e elaborar um plano de ação em que o médico em questão tenha apoio da instituição e dos colegas para se tratar.

O afastamento do Centro Cirúrgico é muito mais uma atitude protetora do que punitiva. E o tratamento idealmente deve ser feito com Psiquiatras e Psicólogos especialistas em dependência química. Casos mais graves geralmente beneficiam-se de internação seguida de acompanhamento ambulatorial. A recuperação é um processo longo, provavelmente um compromisso para toda a vida, já que dependência química é uma doença crônica.

É possível que o anestesiologista retorne à prática anestésica, o que deve ser cuidadosamente analisado caso a caso, por profissionais com experiência na área (psiquiatras e psicólogos), após comprovação de abstinência sustentada por testes toxicológicos (cabelo). A reentrada deve ser gradual e com apoio dos demais profissionais. O manuseio supervisionado de antagonistas, como o Naltrexone, tem se mostrado um fator protetor, já que há risco de recaída e até mesmo índice de mortalidade significativo. Em alguns casos, a mudança de especialidade, ou até mesmo profissão, são recomendáveis.

A alta mortalidade relacionada tanto ao abuso de substâncias, quanto ao suicídio, se mantém uma realidade difícil, mas espera-se que com a maior conscientização, educação e a melhoria do manejo dos casos, aqueles que sofrem com a dependência química possam retomar um certo equilíbrio e voltem a ser produtivos e ter uma vida satisfatória e plena.

Tabela 2 – Sinais e indícios que pode estar indicar Transtornos relacionados ao uso de substâncias

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. Barash’s Clinical Anesthesia, 8th edition (2017).
  2. Figlie NB, Bordin S, Laranjeira R. Aconselhamento em Dependência Química, 3 ed – São Paulo: Roca, 2015.
  3. Mayall RM et al. Substance abuse in anaesthetists. BJA education, 16(7): 236-241 (2016)
  4. Miller’s Anesthesia, 9th edition (2020).

Fonte:

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